O DUENDE QUE CRESCEU DEMAIS

"Interessante se pudéssemos nos comunicar de forma menos

imprecisa, perigosa e confusa do que por palavras.

"Milhares de anos atrás, comunicarmo-nos por sons cada
 vez mais articulados foi essencial para compreendermos
que cooperar era vital para a sobrevivência e evolução como espécie,
 social e fisicamente.

"Neste momento, porém, parece que as palavras, de tão vulneráveis,
 flexíveis em seus sentidos e significados, se transformaram em ameaça
 constante a nossa originária capacidade de nos socializarmos
 de modo menos tóxico e mais real.

"Com os que se aproximam e com os que vivem perto de nós."


Disse tudo quase sem respirar.

Estava lá por acaso.

Um amigo com quem peguei carona disse que precisava 
primeiro deixar um pacote no caminho.

Paramos do outro lado da rua, e ele foi entregar o pacote
uma numa pequena casa com uma enorme árvore  na frente, 
que fazia a casa parecer menor ainda.

A porta se abriu, ele entrou e a porta se fechou.

O tempo passava e ele continuava na casa.

Saí do carro, atravessei a rua, bati na porta da casa.

Ninguém respondeu.

Bati de novo, com mais força.

A porta se abriu e um homem velho, bem velho, cabelos longos ralos, 
brancos, barba idem, fez sinal para que eu entrasse.

- Meu amigo veio aqui para...

O velho, que parecia um duende que cresceu demais, colocou o
 polegar no nariz, indicando que eu deveria ficar em silêncio.

Olhei em volta. 

O tamanho da sala era desproporcional 
à impressão que se tinha do lado de fora do imóvel.

Enorme. Totalmente vazia.

Virei-me para o velho duende anfitrião.

Havia sumido.

Reparei que a sala tinha forma circular. Várias portas ao redor.
Iguais e brancas.

Só percebi isso depois que as luzes ficaram um pouco mais fortes.

Antes a sala estava envolta  numa penumbra suave, com algumas luzes
 fracas se destacando mais perto ou mais distantes.

Um cenário, sem dúvida.

E, naquele momento, me senti como o único personagem de uma
 peça assistida por uma platéia invisível.

Não fazia ideia do roteiro, nem da estória que
 estava sendo contada naquele palco.

Nem quem a estava contando, nem para 
quem ela estava sendo contada.

Abrir uma das portas brancas ao redor da sala
 pareceu ser uma coisa lógica a fazer.

Precisava apenas escolher uma  delas e abri-la.

O resto seria sequência,
ou consequência.

Abrir uma das portas envolvia um ato lógico.
Escolher uma delas, não.

Era como jogar dados contra a parede. 
Nada garantia que os dados nos dariam o número 
de pontos que nos levaria à vitória

Mesmo assim, mentalizávamos esse número na cabeça,
 atitude totalmente ilógica.

Vencendo ou perdendo, continuávamos a fazer isso sempre 
que voltávamos a jogar dados contra a parede.

Escolher qual porta abrir parecia pertencer a esse terreno pantanoso 
entre o que realmente vemos e o que imaginamos que vemos como sendo a realidade.

Atordoado pelo tiroteio cerrado entre meus neurônios dentro da cabeça , 
caminhei até uma das portas brancas e a abri, atitude ilógica e irracional.

Como era ilógico e irracional haver cerca de 50 pessoas sentadas em
 cadeiras alinhadas como num pequeno auditório quando entrei 
pela porta que escolhi para abrir.

Homens e mulheres de idades variadas e todos e todas olhando para mim.

Levantaram e bateram palmas.

Sentaram. E continuaram olhando para mim.

O velhinho duende reapareceu e me entregou um microfone.

"Interessante se pudéssemos nos comunicar de forma menos
 imprecisa, perigosa e confusa do que por palavras.

"Milhares de anos atrás, comunicarmo-nos por sons cada vez 
mais articulados foi essencial para compreendermos
que cooperar era vital para a sobrevivência e 
evolução como espécie, social e fisicamente.

"Neste momento, porém, parece que as palavras, de tão vulneráveis,
 flexíveis em seus sentidos e significados, se transformaram em 
uma ameaça constante a nossa originária capacidade de nos 
socializarmos de modo menos tóxico e mais real.

"Com os que se aproximam e com os que vivem perto de nós."

Não fazia ideia de onde saiu aquilo. Muito menos seu significado.

Escapou pela boca como um jorro de cinzas escuras
 lançadas sobre  a cabeça das pessoas, que agora não só
 me olhavam, mas também aplaudiam

O velho duende retirou o microfone das minhas mãos. 
Me conduziu até a porta, abriu-a e me empurrou
 bem suavemente para fora.

Estávamos de novo na sala circular 
rodeada de portas iguais e brancas.

O velhinho duende pegou no meu braço, mais
 uma vez suavemente, e me conduziu até
 a porta de saída da casa.

Abriu-a e fez uma reverência se despedindo.

Saí.

Vi meu amigo da carona sentado ao volante da van, 
do outro lado da rua. Parecia nervoso.

- Onde você se meteu?

- Fui ver porque você estava demorando tanto pra 
entregar o pacote na casa.

- Que casa?

- Aquela com a árvore grande na frente. Daí 
aconteceu um negócio estranho na casa.

- Eu não entreguei o pacote naquele casa. Foi no prédio
 de dois andares ao lado. Demorei um pouco 
porque o cara não conseguia encontrar o cartão pra me pagar. 
O que aconteceu de estranho na casa em que você entrou?

- Nada, esquece. Vamos embora.

- Você tem tomado os remédios?

- Tenho. Liga o carro e vamos embora, por favor.

- Tá legal. Não precisa ficar nervoso. 


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